do outro lado

Escrevo-te do outro lado,
do lado de fora,
do lado da noite.
Tu estás dentro.
Da cidade, da mãe, do mar.
Eu,
eu estou do lado incerto.

Apesar de tudo, eu escrevo-te.
Porque quase nos encontramos,
porque ficamos tão perto e tão longe,
porque as vidas se cruzam,
na noite,
como comboios,
e às vezes não deixam mais do que um fumo,
um olhar,
subitamente claro.
Porque houve entre nós,
algures, um talvez,
um nunca mais,
por isso, pelo encontro
que não se faz,
eu escrevo-te.

Escrevo-te na justa medida
em que me desmembro, me desfaço,
e com o jeito cuidado
com que se morre de manhã,
num sábado.
Como se o pão fosse fresco e o vinho doce
e o o olhar gratuito e o gesto demorado.

Em ti as coisas nascem
em mim acabam.
No entanto, há coisas que eu sei e tu não sabes.
Nínguem te disse,
mas a noite é feita de pássaros,
pássaros loucos,
de olhos grandes,
perdidos à beira do ninho.
Por isso, eu tinha de te escrever.

Tinha de te dizer que debaixo de todo o cimento da cidade,
hora a hora,
cresce a erva,
crescem palmeiras,
macieiras,
trigo,
cravos.
Simplesmente crescem,
com a força e a dureza do aço.
Indiferentes ao que se diz e faz,
é certo, felizmente.
Mas como se agarram,
como acariciam
o que a gente sente!

Acolhe-me!
A mim e ao meu pião,
ao meu barco de papel,
ao meu corpo,
minha água,
meu verão.

Deixa-me entrar em ti,
voltar a casa,
nadar,
tranquilo,
falar com os amigos
como se o dia fosse novo,
levantar-me de manhã sem cansaço,
rolar na areia,
estender-me,
devagar,
pele a pele,
ao londo do teu corpo.

E os pássaros,
Finalmente insubmissos,
dançarão estranhas danças
que só eles e mais nínguem
sabe dançar.
E não morrerão no sábado
mas os nossos olhos
abrirão ruas
onde crescem os cravos


Carlos
1989
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Em memória do meu pai, de quem sou apenas um pedacinho.