Vi-o espalhar-se pelos outros, por dentro de tudo, tudo que se movesse lhe servia e ele lambia. só há tempo se houver movimento e quando me chegou escorria pelas fendas certas e outras que abro só para ver quem entra. veio assim em liquido vermelho polvilhado de azul direito ao colo, onde nada se endireita pela curvatura que o alimenta. não tentou nada antes. se tivesse arriscado os olhos, mãos ou qualquer música horizontal com pescoço de tango eu tinha travado. um poço de líquido azul no colo e o ranger do embalo de um balde. enquanto me explicava a minha explicação ria-se muito e é sempre verde e verdade, sem saltos altos e sem algas nos olhos. a explicação era de pó verde tira-nódoas e depois de usada ninguém via a mancha da saia e pude sair, com muito pó nas fendas, para tomar um café com o tempo.
Quando entrei no café as cadeiras desenvolveram uma velocidade incómoda de sentido contrário à história e isso era tão real como o poço. não caibo continuamente e a pele está a sobrar-me, sentia-o por fora, a travagem à procura das linhas e o deslizar por dentro. as linhas à volta do meu corpo eram então o espaço apertado onde travava com cuidado antes de me envelhecer. em alguma das cadeiras mais lentas percebi que seria apenas eu a dançar, sozinha num lago vermelho de pó azul, que afinal não tinha entrado pelas fendas, mas saído lentamente do meio de mim. queria trocar de pernas, mostrar que a dança é só uma, com uma perna e milhões de braços em todas as direcções mas a minha explicação era verde e o tempo comia milhares de bailarinos em jejum à medida que empurravam os ponteiros.
E então dancei no meio do lago e fechei as luzes da margem. deixei o tempo observar-me. não estava mais ninguém no café, escolhemos um em que o movimento das cadeiras não perturbasse o lago. estava escuro e havia relógios parados que boiavam à minha volta. e senti faróis negros ao longe e já não sabia se tinham prazer em observar-me ou se registavam apenas. mas como ando cansada de ver os bichos a dançar sozinhos fechei os olhos enquanto o fazia. ouvi-o dizer, eu leio.
No dia seguinte, ou anterior, havia bocados de tempo, alguns meus, colados em folhas de um jornal. os faróis eram afinal lentes com a abertura temporal de exacta solidão. as imagens não sabiam parar e ele ria-se baixinho para o outro lado do universo. ângulos onde me via mas não eram meus e às vezes parecia que eram. e alguém na margem parecia dar-me corda. os ângulos eram de todos para todos e olhavam-se por infinitos. retalhos de bichos publicados, ainda vivos, e a forma como se causavam- jactos de luz rápida que me rebentaram as fendas e me iluminaram o corpo por dentro. nunca tinha vista o meu corpo por dentro. fechei o jornal.
Só voltei a encontrar o tempo em espaço público com granadas no bolso a correr numa circunferência de mínima possibilidade. estava disfarçado de outro líquido qualquer, talvez amarelo clean, mas a suspensão denunciava-o. tinha as mesmas lentes, reparei nas lentes e como fotografava outro movimento qualquer, entrado pelo pescoço em tango e saído noutro estado, talvez inter-ligado e afastei-me devagar. talvez pudesse passar-lhe ao lado, dar passos sem tempo. abri novamente o jornal. bocados de danças lambidas aos outros, feridas de caras esmagadas no papel e linhas sempre lógicas, sem umas não havia as outras e os novelos voavam ao plano de uma melodia horizontal. reparei que as linhas tinham sido sugadas com carinho para não partirem e imaginei o medo no tempo. que talvez não saiba que está espalhado por todo o espaço. pensei em dizer-lhe que não deixe parar o movimento do universo apesar da forma como se ri dele. riu-se. só pode haver tempo se souber rir.
A terceira vez que o vi estava nervoso, a enrolar freneticamente a gravidade, e ouvi dizer que era preciso agarra-lo. cidades inteiras giravam-lhe à volta e as árvores ultrapassavam-nas em emergência de um velho saber. eu caminhava devagar na circunferência, desta vez sem granadas. começava então a perceber que o tempo é mais branco e o medo que o contínuo nos pode fazer. era preciso um referencial e até o meu espelho servia. como se organiza uma circunferência, e eu repetia, repetia sem centro. mais uma vez os bancos do jardim não se decidiam e eu percebia a necessária imprecisão do espaço quando o encontro. as árvores pararam, envergonhadas ao longe, e só nós em pico de energia de uma superfície subitamente alisada. numa cadeira uma pedra tentava o movimento e na outra magma doce directamente do centro a perguntar-me, tens frio? não tinha frio, estava só a transformar-me em pedra. teria sido convidada para assistir ao colapso de um buraco - nos buracos fecho os olhos para descansar, não são tristes são só negros dizia-me - teria o buraco rodado demasiado ou seria ainda só o velho poço - estava dentro do horizonte, não podia ficar sentada - isto é urgente, tens que inverter a seta, fazer voltar todo o magma para dentro do vulcão até um único ponto - perguntava-me se sabia que a probabilidade de eu não estar ali existia e ria-se. o riso do tempo é um passar de mão pelo pêlo da humanidade. despacha-te, dizia-lhe, e o magma ia derretendo a pedra que só tinha solidificada nas fendas. e eu corria e contava e contei tanto e corri tanto contra os ponteiros que julguei que o tempo fosse parar - no balde subiu só uma lágrima. perguntou-me: será que só se sai do horizonte quando se sabe amar o tempo?
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