Em cuidado de vós
não vos debruceis nessa varanda
que é pouco segura a cascata de ferro 
a tremer até ao Douro

olhai bem este sítios queridos
vede-os com derradeiro olhar
em copas de tormento tomai
o que de chão vos restar
que nesta rua não há baloiço
que não vos lance em alto mar

cinco janelas, cinco cavaleiros 
a cavalo em gaivotas que relincham
levam esta carta à minha infância 
e todos espreitam na rua
o candor que nela vai bordado:
o teu olhar de baloiço à janela
que outrora embalava a cidade ao meu lado

aqui regresso 
em vela caída que chama
a fruta demasiado doce à mercearia
e ao rio a verdade que resvala na rua
segura em aperto de mãos 
entre bons dias e passadas suspensas à noite
como o violino de uma criança
que vencesse o carrilhão dos Clérigos
ou o Outono que abandonaste
debruçado em mim até ao mar

em cuidado de vós
não quereis ser desta rua sem o serdes
que não há verdes em equilíbrio
que aqui não tombem 
em murmúrio de nevoeiro quando há luar

por aqui passai de um verso a outro
como um soldado de chumbo
sem hesitar, cantai aos cavaleiros
e bailai com as gaivotas sobre o gelo
mas não pouseis, visitante, com elas
que asas não vos chegarão para levantar

a mim deixai-me quieta
que o tempo agora é este:
uma rua inclinada para as tuas mãos
        

(Virtudes)
                                      





trago-o na vibração inquieta da matéria sem vontade
finjo não ouvir o trabalhar 
de operários de amor
o badalar crescente 
navio de espelhos que pulsa em ombros lançado 

devo ignorar a luz que abandona os sinos ao entardecer 
imperturbáveis, e a mim não,
vem assistir a este pulsar
vaidosa ao espelho 
entre sinapse e quase ar

devo ignorar noites de cidades gravadas nos pulsos 
ser navio que cavalga
e ter milhares de portos para descarregar o mundo
cantar mais alto que a matéria sem vontade
soprar devagar onde escureça
e deixar que a luz oscile em cada olhar cruzado
sem o querer descruzar
devo ser feliz à desgarrada 
operário de um só pulsar
e não denunciar os sinos










um trompete dança-me agora a medo
sopros abertos por dentro
erguem-me os braços e bailam para longe
é exacta a saudade entre os meus braços 
e as pernas calçadas de margens sem mim
sei das paisagens mas entre as minhas pernas e o horizonte
sempre houve danças que não entendo
prefiro a superfície da música 
sem direcção, um gesto em vez de um passo,
o movimento das pernas não pode escrever-te num quarto escuro, 
só mãos a abrir um corpo 
sem pernas o amor é de braços longos capazes de calar a linguagem das árvores
quando já só existe um vento fino ao piano,
os braços não caem 
e um movimento de alegria tem que ondular pelo corpo acima
seguro, quando rodas
os teus braços levantam um pólen tão ordenado como o das abelhas
que recolho nos meus 
e se os vires desvanecer em direcção pouco certa
nesse instante diz-me adeus, como se só as pernas me tivessem partido,
tem cuidado meu amor com a inveja que as palavras têm dos braços
um gesto ouve-se menos que um passo
e o nosso abraço roda sem atrito
vês, como se ergue ligeiramente  
e vai dispersando a terra que lhe cai em cima
os teus braços não são teus 
são duas rezas minhas 

No místico [...] começa por operar-se um estreitamento da consciência do mundo exterior, compensado por acrescento intensivo do campo da consciência do mundo interior.
Manuel Laranjeira
A doença da Santidade
proporções óbvias 
entre o místico e o louco
se a regra é a de proporcionalidade então essa é a verdade, o místico é proporcional ao óbvio e o óbvio ao louco, o que não é proporcional não existe.
uma linha vertical desenhada a meio do olho, em frente o olhar óbvio, subindo e descendo a linha, o místico e o louco, incapacitando o caminhar.
o louco corre para dentro, o místico corre para fora, deixando assim o óbvio calmamente no início.
uma nova teoria despede-se da velha com um aperto de mão e seguem em sentidos contrários. o louco e o místico despedem-se com as mãos do mesmo corpo e seguem em cruz.
o místico escreveu uma longa carta ao louco a explicar-lhe que não está sozinho, o louco respondeu, com um pequeno poema, a explicar ao místico que não está acompanhado.
o óbvio pode ter medo. as coisas óbvias podem ter medo e disfarçar para não nos assustarem. os planetas podem ter medo. e se a realidade tem medo de nós - os átomos são mais loucos e místicos que óbvios.
o louco dança com arcos de óbvios à cintura. o erro dança com arcos de loucos à cintura. o óbvio dança com arcos de erros à cintura. a música que ouvem é a mesma. não é mística, nem louca, nem óbvia.
o místico e o louco acreditam que é óbvio acreditar. o óbvio acredita que é místico e louco acreditar. acreditam.
o louco segue a dança das peças, o místico os quadrados pretos e brancos do tabuleiro, o óbvio as regras. ninguém ganhou ainda.
a lágrima do louco é abandonada à saída, a do místico é lançada para cima e a do óbvio é disparada em frente. as lágrimas demoram o mesmo tempo a chegar ao chão.
o místico não utiliza ferramentas, por falta de curiosidade, o louco não distingue as ferramentas da curiosidade, o óbvio utiliza como ferramenta a curiosidade, que repete até à exaustão do material.
o louco tem asas, o místico tem asas, o óbvio pode voar.

talvez os polegares não desviem as águas
dobradas pelas raízes 
em conversas a fio
pensava nela a regressar das raízes pelas mãos
de como se lembra de toda a água que já foi
e se ouve ainda o fechar da maré 
em cada rotação dos seus olhos
ouvia repetidamente
divide a luz se te atreves
e talvez aí a sombra
cada célula 
grávida de um segredo:
não espero da água 
o que espero de mim
que no código de vez em quando 
tenha sobrado um verso:
pode levar-se uma pergunta ao infinito
ou dar-lhe um beijo

sobe a custo um corpo 
na minha rua
a acrescentar curva à luz
só assim sabe que é corpo 
com ele cruza-se um cesto vazio à cabeça 
de peso igual ao corpo que sobe
e é este o único cruzamento
ao fundo da rua 
o gesto curva um pouco mais
ao pousar do cesto
entre o batimento de pernas e asas 
que passam e nunca se cruzam
o infinitésimo pousar
de morar